Dentre tantas coisas que tem surgido durante a quarentena, uma das mais presentes é a saudade… mas não a saudade do que eu tinha: poder sair para onde quiser a hora que quiser, andar de bicicleta, ir ao parque com as crianças, passear com o cachorro ou até mesmo trabalhar. Tenho sentido saudade da minha infância, época em que uma época achava que nem tinha mais lembranças daquela época, e dentre tantas lembranças uma que tem surgido durante a quarentena, uma das mais presentes é que eu morava bem perto de um fliperama que vendia churros (crianças, talvez vocês não entendam, então vou explicar: um lugar onde existiam muitos videogames específicos, cada um com seu jogo, e que para jogar você precisava colocar uma ficha e podia jogar uma partida, caso você perdesse existia a possibilidade de colocar outra ficha e seguir aumentando a pontuação no mesmo jogo e bater o record do jogador anterior ou utilizar sua ficha para comprar um churros de doce de leite que podia te deixar até mais feliz devido a quantidade de açúcar no doce) onde eu estava mesmo? ah sim… lembrei… no fliperama, de tantos lugares que fizeram parte da minha infância esse era um dos que mais freqüentava, todos os dias ganhava uma nota de 1 real (crianças: antigamente existia uma nota verde com um beija-flor que valia apenas 1 real!!) para a merenda (crianças: merenda é uma palavra que não me agradava muito, não sei explicar o motivo, por isso usava o dinheiro para comprar lanche, que é a mesma coisa que merenda), e toda a vez que não me rendia às frituras do Tochio, senhor japonês que vendia coxinhas maravilhosas na escola por exatamente 1 real… (crianças: sim… naquela época era permitido vender fritura nas escolas) eu guardava para poder jogar uma ou duas partidas no fliper, lá existiam todos os tipos de jogos, Street Fighters, Nascar, Pac-Man e as mais variadas formas de pinball, meus favoritos desde sempre, um jogo real! Que você não escolhe a dificuldade, o jogo depende de esperar a bolinha chegar até os lançadores e estar pronto para apertar os botões e fazer a bolinha voltar para o alto, para o jogo e quanto mais a bolinha se entrega aos obstáculos mais ela ganha velocidade e força e mais difícil vai ficando o jogo e consecutivamente você ganha mais pontos e também fica mais difícil estar na prontidão, mas se por um revés do destino a bolinha passa exatamente entre os lançadores e nem com o direito e nem com o esquerdo você não alcança a danada, não se preocupe, ainda existia a outra metade da minha coxinha, digo… existia ainda a outra ficha e assim voltava ao jogo e a partida continuava de onde parava, vez ou outra me contentava com a pontuação alcançada, e usava a outra ficha para as boas sensações do açúcar do churros de doce de leite correndo pelas minhas veias (crianças: essa sensação vocês devem saber qual é e seus pais melhor ainda).
Dentre tantas reflexões que tem surgido durante a quarentena, uma das mais presentes é o fliperama e o pinball… já parou para perceber como nossa vida pode parecer uma partida de pinball? Você puxa o disparador de bolinhas, a vida começa, logo na primeira curva já surgem os primeiros obstáculos, dependendo do seu contexto existem mais ou menos obstáculos: comer na hora certa, se você tiver o privilégio, tomar banho, parar a brincadeira para fazer a lição de casa, ir para a escola, jardim III “C”, primeira série “A”, segunda série, terceira… tirar 10 em educação física, calcular quantos décimos precisa para alcançar a média em matemática para não repetir o ano, conselho de classe (crianças: não sei se o conselho de classe ainda existe, mas siga meu conselho: respeite sempre seus professores)… e assim, esses obstáculos vão supostamente aumentando nossa pontuação e nos cobrando cada vez mais prontidão para não deixar a bola cair, vamos acelerando cada vez mais! Ensino Médio, primeiro namoro, jogos poliesportivos, preparação para o vestibular, escolher uma carreira, vestibular, faculdade, formatura, primeiro emprego, segundo… terceiro, às vezes os três ao mesmo tempo. No jogo chamaria isso de multibolas (crianças: é quando você precisa se preocupar com umas 5 bolinhas em jogo ao mesmo tempo: trabalhos, contas, boletos, final do mês… se você ainda tiver dúvida nisso pergunte para os seus pais), às vezes no pinball ganhamos uma bola extra que dá um certo alívio, um momento de respiro na loucura do jogo, na vida essas bolas extras são os feriados, férias, licença maternidade ou paternidade no meu caso, alguns dias para você pausar o jogo e lembrar que a vida acontece independente do próprio jogo, que existem relações outras… com a família… as pessoas… com a natureza… o mar… o sol… mas logo volta-se à partida, aos barulhos alucinados e às luzes vibrantes e produção, mais pontos, mais bolas, mais dificuldades, mais desafios, mais.. mais.. mais… por muitos momentos você até esquece de que está vivo no jogo e parece apenas estar apertando botões para ter uma pontuação cada vez maior para superar o jogador anterior e que provavelmente será ultrapassada pelo jogador que vem depois (crianças: vocês já pararam para perceber que desde muito pequenos estamos sempre buscando a melhor pontuação, o melhor resultado? Não ser pego no pega-pega, no esconde esconde bater o “31 meu!”, na amarelinha chegar ao céu? E se por algum motivo você não atinge a meta do jogo, cantam “não sabe, não sabe, vai TER que aprender”?), até que por um revés do destino, sem esperar, sem estar na sua agenda, sua última bola rompe o espaço vão entre os lançadores e cai no abismo chamado de game over, fim de jogo, CORONAVÍRUS, Quarentena! Fique em casa! e logo no display da máquina aparece a significativa sugestão, quase que capitalista “Continue?” (crianças: é quando o sistema não está interessado que você supere seus medos e avance em sua pontuação, apenas quer sua outra metade da coxinha, sua outra ficha) e se não bastasse te deixar temeroso e em dúvida sobre o próximo passo ainda lhe faz pressão numa contagem regressiva 10… 9… 8… veja a economia… não podemos parar… é só uma gripezinha… um resfriadinho… 3… 2… 1… E daí? É verdade que ficar em casa é quase um privilégio de classe, porém é também uma necessidade social! Dentre tantas coisas que tem surgido durante a quarentena, uma das mais presentes é a importância da própria quarentena! Então SE VOCÊ PUDER, fique em casa, aproveite para comer um churros de doce de leite. (Ahhh! e crianças: isso tudo vai passar e logo voltaremos ao jogo… juntos dessa vez!).
Paulo Carneiro / Palhaço Abelardo Biloba