Time capsule
Olá, seres deste mundo distópico do futuro. Se tudo der certo, estarão recebendo esta carta daqui a 20 anos, pois estou colaborando com a feitura desta cápsula do tempo, desta time capsule. Ah, desculpem, pra vocês é “hoje”, mas, pra mim é “daqui a 20 anos”. Aliás, aproveito pra falar um pouco sobre um aspecto do mundo de hoje, quero dizer, do mundo do passado, o meu mundo, esse de que faço parte enquanto escrevo… Tá ficando confuso… Imagino, pra vocês como não está… Esperem.
Vamos fazer assim, quando falar do passado, falo do “meu mundo” e quando falar do futuro, falo do “mundo de vocês”. Deu pra entender, seres do futuro? Vamos supor que sim. Como estava falando, lembrei que aqui, no meu mundo, acabei de comemorar 20 anos do exercício do projeto em que trabalho, a “Trupe da Saúde”, um projeto de palhaças e palhaços que visitam hospitais na cidade de Curitiba. Imagino que a cidade tenha mudado de nome para algo como Seattle Draft, ou algo assim, na Sub-tropical Captaincy Settlement, South-East. Ficou bonito né? Todo mundo deve falar inglês aí no mundo de vocês. Bom, mas vocês é quem vão me dizer. Como não recebo cartas do futuro, não tenho como, se não, fazer uma prospecção imaginativa.
Voltando ao projeto Trupe da Saúde. Deixe-me explicar. Houve um tempo, ainda no meu mundo, em que a arte e a Cultura eram compreendidos de maneira mais ampla, como aquilo que dá sentido às atividades humanas, e que conformava a massa identitária de um povo e de uma comunidade. Falei bonito, né? Trocando em miúdos, acreditava-se que a arte e a Cultura eram importantes. Não só enquanto entretenimento, mas também como promoção do bem estar e da saúde. Então, entendido desta forma, um projeto como este em que trabalho tem, tinha, lugar.
Desde que comecei a experimentar a palhaçaria, por causa desta prática, me deparei com um aspecto bastante conflituoso da constituição da minha personalidade, a saber, de que deveria, de alguma forma, estar confortável com meus defeitos, com o fato de ser um deslocado, imperfeito (oh, drama). Falando em defeitos, um palhaço no meio de um hospital tem tudo pra dar errado, e por isso mesmo, tem tudo pra dar certo. Estar em contato com o fracasso e transmutar isso em algo risível ou, ao menos, suportável, é uma arte. E olhe, sempre considerei essas habilidades, e a prática nos hospitais, como os maiores desafios enquanto palhaço. Já fiz palhaçaria no Teatro, na rua, em praças, e em festas infantis, mas destas todas, acredito que, a mais desafiadora seja a de estar no hospital mesmo. Claro, em festa infantil tem umas buchas também, mas, enfim, tá no páreo. O fato é que a missão de estar no hospital tem uma carga maior de responsabilidade do que no aniversário. Do aniversário ninguém escapa, e acontece com ou sem palhaçaria, né? Faço essa pergunta porque imagino que não devam ter muita palhaçaria aí no mundo de vocês. Nem em aniversário. Tô certo ou tô errado? Espero que saibam do que estou falando.
Sabe, é difícil falar com alguém distante no tempo, é difícil supor quais os pontos de comunicação convergentes. Bom, é melhor do que com algum ser de outra espécie, ou extraterrestre, imagina, que loucura seria….
Enfim. Lá no hospital eu já vivenciei momentos gloriosos, de muita diversão mútua, onde vi pessoas gargalharem. Também vivenciei momentos difíceis, tristes, intensos, em que tive que engolir seco e me dispor a dar um abraço em alguém, e o palhaço deu espaço para outra coisa que está presente antes das maquiagens e das roupas coloridas. E finalmente e mais constrangedor foi passar por momentos onde o palhaço não era bem-vindo, seja por ser um momento inconveniente, seja por tornar-me inconveniente, seja por não saber como
lidar com qualquer situação, e sentir-me impotente, sem transmutação possível. Aqueles momentos que a gente queria ser uma tartaruga pra esconder a cabeça pra dentro do casco.
Tem tartaruga ainda aí? Enquanto escrevo a vocês, passamos por uma crise ecológica aguda. Secas, incêndios florestais, muito, muito descaso e ação criminosa. Então, imagino que, se nada mudou, a tendência é estar meio brabo aí no mundo de vocês. Peço desculpas da minha parte, mesmo que desculpas, agora, não resolvam nada, né? Voltando ao assunto. Como disse a Trupe da Saúde acaba de completar 20 anos de existência, e eu participei de nove desses vinte anos. Neste meio tempo aprendi muita coisa, junto com o projeto, que também vem aprendendo muito. O projeto mudou bastante, desde que começou, porque é na prática que a coisa se dá. E outra coisa muito importante, a cara do projeto é essencialmente a cara das palhaças e dos palhaços que dele fazem parte. Então, cada vez que entra alguma palhaça ou palhaço no projeto, a coisa se re-configura diferente. Cada amadurecimento individual também gera modificações. É um corpo vivo e cheio de pensamentos. A gente fica nessa meta-reflexão, pensando em quem somos e pra que viemos, e sempre damos voltas e voltas e sabe de uma coisa, acho que se eu tivesse que dizer, eu diria que somos, palhaças e palhaços em hospitais. Quem sabe vocês não retomam esse projeto aí no futuro? Quem sabe não seja um bom jeito de lidar com os erros da humanidade?
Grande abraço naftalínico.
Palhaço Pelúcia