Às vezes me lembro da produtiva e importante prática de anotar reflexões, ideias e apontamentos ligados ao meu trabalho como palhaço. Diversos motivos me afastam disto, dentre eles a correria do dia a dia. Mas às vezes consigo rabiscar algo. Encontrei, durante a espera de uma viagem de ônibus, algum tempo para tomar notas em meu caderno. E eis que me vi tecendo reflexões sobre a importância do “erro” no trabalho do palhaço no hospital.
O hospital é uma ambiente delicado. Exige uma série de normas e procedimentos, dentre elas, a correta e constante lavagem de mãos e o cuidado pacientes isolados por estarem contaminados ou por estarem com imunidade muito baixa; procedimentos importantes para evitar contaminações cruzadas dentro do hospital. Ou seja, o palhaço ao “espalhar felicidade” não deve espalhar infecções e doença. Além disso, os demais profissionais de saúde estão em pleno trabalho quando visitamos o hospital, e muitas das atividades executadas por eles exigem total atenção e concentração, como a administração de medicamentos e outros procedimentos junto ao paciente. Estes cuidados, se não respeitados, podem acarretar ao que conhecemos por “erro médico”, o que é muito grave. Em última instância deve-se atentar para a condição vulnerável e de exposição da intimidade a que estão sujeitos os pacientes e seus familiares enquanto submetidos a internação. Aqui, o erro seria, tornar esta sensação de desconforto ainda maior para o paciente, e não é para isto que nós palhaços estamos ali. No entanto, o erro, para o palhaço, é um pré-requisito.
E agora, José? um paradoxo.
É importante notar que o erro absoluto, o erro médico e o erro cênico não são a mesma coisa, por mais que possam coincidir e influenciar-se mutuamente. Uma das coisas que aprendemos na palhaçaria é que, se por acaso, algo de errado, de não programado, de inesperado acontece, devemos convidá-lo ao acontecimento cênico, devemos assumí-lo diante do público como parte do que estamos ‘apresentando’, ao contrário de o ‘esconder’.
O palhaço dá com a canela em alguma quina, sem querer, e ao dar um grito de dor pode ser muito engraçado e genuíno. Num momento posterior é importante fazer uma reflexão para entender se aquela reação ou aquele tipo de acontecimento é desejado à performance, ou até, se é desejado por quem esteve diante de mim. Um grito num hospital pode mobilizar a equipe de enfermagem para uma emergência; pode acordar uma criança que custou a dormir por causa da dor, e assim por diante. Então o artista articula estratégias que o ajudem a evitar aquele tipo de reação ou, mais interessante, criar possibilidade para que outras reações, mais positivas e ou mais bem vindas, posam suceder, por exemplo, segurar a dor mordendo os lábios. O importante é lidar com os acontecimentos cênicos, no momento em que ocorrem, sem julgá-los, e num momento ulterior avaliá-los. O palhaço e o artista (aquele que está por trás do palhaço) atuam de forma complementar.
Enquanto eu tomava estas notas em meu caderno, dentro do ônibus ainda parado na rodoviária, sentado no meu assento, chegou uma moça com seu bilhete em mãos olhando para mim. Logo intuí que eu estava sentado no lugar errado, ou, ao menos, era o que ela deveria estar achando. Apesar de desconfiar que eu estava de fato no meu lugar certo, agi, sinceramente, como se ela estivesse certa e me levantei pedindo desculpas. Enquanto ela se sentava, resolvi consultar meu bilhete para confirmar minha suspeita, e, de fato, eu estava errado.
Palhaço Pelúcia