Essa é a gota d’água.
Parece uma coxinha, mas é gota d’água
Desprendida, precipitada.
Olha! Ela caindo. Rápido, corre que dá tempo de ver ainda.
Calma, ali está ela. Ta vendo? Sim, aquela.
Perceba que bonito como ela balança para manter sua forma enquanto se ajeita contra o ar.
Se eu vi de onde veio? Não.
Não, não acho que tenha saído de torneira. Elas estão fechadas, nota?
Além disso, é racionamento, já não cai mais.
Ei, calma. Fica um pouco mais, observa. Quer meus óculos emprestados?
Olha ela.
Veio de um espirro? Acho improvável. Não ouvi nenhum, a vizinhança silenciou faz uns dias.
Além disso, a janela está fechada pra fora.
Sim, já vou lavar as embalagens, só estou pedindo um momento junto pra observar a gota d’água, não quero que seja uma atividade solitária.
De uma nuvem cinza? Já faz tempo não vejo dessas. A chuva não veio. Nossos reservatórios secaram. Além disso, não há furos no teto.
Sim, sim, a comida no fogo, deixemos cozinhar sem pressa.
A reunião pode esperar, ninguém vai fugir da própria casa agora.
Assim espero.
Olha.
A gota.
Já vi outras gotas parecidas com ela.
Em outros momentos.
Outros lugares. Outras pessoas.
Vou tentar pegá-la. Pelos outros tempos. Pra gente guardar.
Não.
Não vai ser perigoso.
Segura a minha mão pra eu esticar o braço.
Mais um pouco.
Um pouco.
Só um tiquitinho.
Peguei!
Me puxa de volta.
Vem olhar. Vou abrir a mão devagar.
Pra
ela
não
escapar.
…
Ué. Cadê a gota?
Isso aqui? Isso não é uma gota.
Ah. Foi.
Ela deixou de ser gota e virou um espalho na palma.
No fim das contas, não acho que peguei uma gota d’água.
Peguei um espalho na palma.
A gota durou seus instantes.
Olha! Ali no espalho na palma! Bem de perto.
Ta vendo?
Eu e você ali. Mas de ponta-cabeça.
Quem diria, nós, de cabeça pra baixo e pés pra cima.
Tudo virado.
Agora quem ta isolado é a gente.
Você lembra de antes?
Da gota?
De antes da gota?
Das outras gotas?
Gotas que pingavam do soro e a gente disse que era suco e também queria.
Gotas invisíveis com as quais regamos o jardim das enfermarias.
Gotas de suor de passar a tarde pulando nos corredores.
Faz sentido?
Lembra delas?
Lembra de nós?
Lembra que a gente se conheceu em circunstâncias inusitadas?
Sim! Quem diria que eu estaria lá, com aquela cara vermelha e aquele sapatão.
Sim! Quem diria que bem na hora em que eu ia pegar o trinco você abriu a porta pra trazer a comida.
Que encontro!
Lembra quando a gente se encontrava toda semana?
Sim! E que você me chamava de outro nome pra me provocar.
Dirce.
Cotonete.
Shirles.
Faz pouco e tanto tempo.
Mudou, mas ainda dá pra ver a gente. Tudo virado, mas dá pra ver.
Eu sei, ta puxado.
Cansa.
Tem gente que não respeita.
Incita invadir hospital de campanha.
Realmente, essa que é a gota d’água.
Você está bem?
Que bom!
Sim, sim, já tem que ir porque agora é intervalo.
Foi legal agora. Em breve teremos mais tempo.
Só mais um tempinho. Tem que dar.
E a gente se vê de novo.
Enquanto isso, vamos nos cuidando.
Eu daqui, você daí, longe.
Uma hora esse encontro dá certo.
E a gente para pra observar junto.
Sem pressa.
Sem pressão.
Olha.
Outra gota d’água!
Não vi de onde veio.
Lourdes (Bruno Lops)