O dia estava atribulado.
Lembrou-se com certo susto, entre pendências digitais, que naquele dia iria para o hospital. Não, não porque estivesse doente. Iria a trabalho, a passeio, a palhaça.
Entre corridinhas de um lado para o outro catando coisas e tentando não esquecer de nada que houvesse sido útil há exatos 2 anos e 5 meses atrás, pensava com assombro “será que eu ainda sei fazer isso…?”
Almoçou apressada. Entrou no carro apressada. Deixou o filho na escola (sim, palhaços procriam), também apressada. Dirigiu obstinada até o novo endereço sede do escritório e camarim. Passou direto, deu à volta na quadra, estacionou, começou a chover.
Caminhou apressada pela rua, guarda-chuva e sacolas nas mãos. Vestia metade do figurino e tênis, que era pra não molhar os sapatos bonitos, tão bonitos. Chegou afobada ao interfone, que não funcionava. Por milagre ou sorte, alguém abriu.
Entrou naquele novo espaço sem muita cerimônia, levou bronca do colega pelo atraso no primeiríssimo dia, respondeu atravessada. Pensou consigo “primeiro dia não é pra ser assim!”. Reclamou porque algo estava faltando, perguntou onde é que ficava o espelho, correu com a maquiagem e descobriu que de máscara – não aquela vermelhinha característica que só cobre o nariz – mas a grande e intrometida que atravessa relações cobrindo nariz, boca e queixo, só precisaria maquiar os olhos.
Ficou pronta, mas esqueceu de colocar o nariz. Catou sacolas e guarda-chuva: “Vamos de carro que lá tem onde estacionar” disse a palhaça. Chegando ao hospital, passou da entrada, deu uma nova volta na quadra, mas não tinha onde estacionar. Colocou o carro no estacionamento pago e ganhou o mesmo desconto dos médicos, porque era palhaça. Achou engraçado, achou chique. “Mas podia ser de graça”, provocou.
Atravessou a rua, entrou no hospital.
O corpo rapidamente reconheceu o espaço, sinapses cerebrais apressaram-se por caminhos já esquecidos e os olhos da palhaça encararam… O público.
Sentadinhos como de costume, na recepção daquele hospital, alguns olhares interessados, outros distraídos. O segurança simpático, como de praxe. O pessoal da limpeza, tão querido. As recepcionistas, amigas. A equipe de enfermagem, apressada.
Apressada ela, não mais.
Caminhou vagarosamente pelos corredores. Cumprimentou alguns, sorriu para outros por debaixo da máscara. Surpreendeu-se com a velha novidade que era abrir a torneira com os cotovelos. Lavou a mão cuidadosamente, demoradamente.
Bateu de porta em porta, hora encorajada pelo parceiro, hora em sua cola esperando um primeiro contato favorável.
Encontrou um tanto de gente, contou um bocado de história, comoveu-se com uma senhorinha que lembrava a avó.
Esqueceu-se de contar os pacientes para por no relatório, mas depois lembrou, ou foi lembrada, já não se lembra mais.
Fez aquele jogo do aluguel de quartos, da fiscalização do hospital, falou de comida gordurosa, quase bebeu álcool gel. Deu de presente um fusquinha e uma flor que era na verdade uma cuia de chimarrão.
Riu do colega, respirou fundo antes de entrar nos quartos, ficou sem assunto, olhou bem dentro dos olhos, chegou naquele último quartinho do fim do corredor que é melhor nem falar.
A pressa diluiu-se no tempo e o tempo dilatou-se no espaço. Acabou mais cedo, antes da hora.
“E não é que eu ainda sei fazer isso…“ pensou.
E foi embora feliz, mesmo que naquele dia tenha esquecido o demaquilante e tirado a maquiagem com papel higiênico e álcool gel.
Yara Rossatto – A palhaça Solara