Não entendiam o que estava acontecendo.
Da noite para o dia o camarim barulhento emudecera.
Eram tantas histórias diárias: o novo namorado, as descobertas do filho, a indignação com o último pronunciamento daquele político, a estreia daquela outra peça…
Faltavam também os cheiros: sabão em pó, café, pancake, marmita, desodorante, pum. E outros cheiros menos evidentes que se misturavam: batom vermelho, sol, pasta de dente, biscoitinhos amanteigados e sim, o temido cheiro de sovaco que agora chegava a provocar saudades.
O som dos cabides correndo na arara, o empurra-empurra, a hesitação para escolher uma peça, a ansiedade para estarem entre as escolhidas. Não era que quisessem aparecer… Mas sair para passear era tudo que mais queriam. E é claro que tomar um ar lhes fazia bem.
Mas haviam ressalvas: andava quase insuportável escutar a conversa dos sapatos, aqueles exibidos estreantes de caminhada. Haviam chegado não fazia nem um ano e se sentiam os novos protagonistas do pedaço: “Somos os sapatos novos da Trupe!” diziam entre conversinhas banais sobre a nova ala que haviam conhecido. Oras! Elas conheciam TODAS as alas. Se fossem sapatos, iriam sozinhas caminhando por todos os lugares. Mas sim, havia que lembrar que eram uma equipe…
Quando o passeio acontecia, tudo era deleite: o calor do corpo-casa era o que mais gostavam, mas havia também o ventinho que batia quando saíam pela porta do prédio preto, o sol quando estava lá, o banco do carro (aquele folgado de toque macio que se esfregava com todo mundo). Depois vinham os olhares: como eram notadas! Havia quem reparasse sempre que apareciam, na textura, na estampa, na cor. Nem sabiam como agradecer aos elogios, então ficavam em silêncio.
Também tinham os seus segredos. Podiam sentir os pelos se levantarem em arrepio, o movimento da respiração, as mãos que procuravam algo em seus bolsos, ou o ritmo dos passos que as faziam vibrar a cada passada. Sinais que lhes indicavam como ia o dia, o passeio, o trabalho. Escutavam tudo: de cumprimentos a histórias, de choros a risadas. Escutavam também palhaça conversando com palhaço, comentários e confidências que contavam sobre a vida. Escutavam tudo, não contavam nada.
E assim, da noite para dia, o camarim emudecera.
Foi depois de um mês, ou de um século, que alguém apareceu. Não sabiam de onde, não sabiam por quê. O alguém percorreu o camarim em silêncio, e olhando atentamente para os cabides, escolheu. Uma a uma, junto do batom, do nariz vermelho e do sapato novo não tão novo assim (urgh) foram parar em uma grande sacola plástica. Era um pouco claustrofóbico, mas estavam acostumadas com o trajeto entre a lavanderia e o camarim que costumavam fazer naquele tempo, ontem, semana passada ou há um ano. Parecia até outra vida.
Que caminho é esse? O trepidar do carro não parecia tão conhecido. Parada aqui, parada ali. Ansiedade. Outras sacolas cheias de roupas foram sendo deixadas, assim sem mais nem menos pelo caminho. Que destino lhes aguardaria? Seria bom? Seria o fim?
Nova parada. Era a vez delas. A mão do alguém agarrou a sacola, retirando-as do carro, enquanto falava com outro alguém. Estremeceram.
Mas esperem: aquela voz era conhecida. Aquelas vozes eram conhecidas! E ambas as vozes pareciam felizes em se encontrar, quase emocionadas. Vibraram.
Era ela. Aquela-que-as-vestia. Emocionaram-se também. Aquela-que-as-vestia tomou a sacola em suas mãos, e a proximidade do seu corpo fez as roupas dentro da sacola aquecerem-se como se por osmose.
Era uma estranha sensação, como se assim de repente, tivessem voltado para casa.
ABRIL 2020
PALHAÇA SOLARA / YARA ROSSATTO