Morar no centro, pó nos móveis. Ruas movimentadas, compra e venda, prédios. Vida intensa à mão e nos deslocamentos. Menos de um minuto e você atravessa do mais conhecido teatro à mais antiga universidade. Uma andada no calçadão e você encontra 4 ou 5 amizades, se der tempo um abraço ou um “o que anda fazendo?”. Passa de mais uma pessoa na multidão para “olha quem está aqui!” – eu sei que conhecem você! Pega o ligeirão, o ligeirinho. Compra pipoca, perde carteira, olha que gatinho. Pra quem mora nos edifícios, vive-se e assiste a tudo isso diante da janela de casa, se der pra rua. Na sorte, da sua janela se vislumbra um pedacinho do céu.
O céu de Curitiba tem fama de ser cinza e triste. Hoje, contrariamente às paródias populares, ele está azul, pelo menos no pedacinho que vislumbro. E que ceuzinho lindo. Ceuzinho lindo é, aliás, o título da tradicional canção mexicana composta por Quirino Mendoza y Cortés. Não exatamente Ceuzinho lindo, porque no México não se fala português brasileiro, então o título em espanhol é Cielito lindo. Diz-se que dedicou à sua amada que tinha um sinal na boca, que em espanhol é lunar (o sinal, não a boca). O refrão diz:
Ay, ay, ay, ay
Canta y no llores
Porque cantando se alegran,
Cielito lindo, los corazones
Que em português fica mais ou menos:
Ai, ai, ai, ai
Cante e não chore
Porque cantando se alegram,
Ceuzinho lindo, os corações
Cantar alegra corações, ceuzinho lindo, mas discordo que cantar e chorar não possam ser atividades praticadas conjuntamente, especialmente porque uma se dá pela boca (com ou sem lunar) e outra pelos olhos (que são lunares em seu brilho). Já chorei cantando, não porque não canto bem como a Fúcsia (ainda), mas porque me atravessou a canção da boca aos olhos. Cantar sempre me foi difícil mas aprendi a potência do canto na Trupe da Saúde quando saímos de uma enfermaria na ala de queimados cantando junto com as pacientes, uma delas emocionada, lacrimejando, movida pela voz da Iva Lourença.
Aprendi do canto, como também aprendi outras coisas. Da Carmela, uma das mais valiosas lições de palhaçaria na forma de pergunta: coitado, você acreditou em tudo que eu disse? Cantamos, fantasiamos e, como aprendi com o Pelúcia, nos manifestamos, mesmo com dores na lombar ou enfrentando a preguiça que nos move. Movemo-nos em bando, como pássaros no ceuzinho lindo que pode ser um corredor de hospital.
Habitar o corredor, silêncio e barulho. Espaço de transição, encontro e acontecimento. Aqui calculamos quantos quartos visitamos e quantos faltam visitar. Numa tarde tanta coisa, diz o Ipsis Literis, em 9 anos tantas mais, digo eu enquanto assisto ele falar gromelô com um bebezinho. Subo o andar e vou à lanchonete com a Siriema que separou 5 reais pra um bombom, um café e um passinho de funk enquanto espera o último ficar pronto. Sempre atenta, ela reconhece a chegada do Abelardo e do Tropo pelo som da sanfona e do violãozinho, respectivamente. Já visitaram todos os seus quartos? Sim, já não é mais tão cedo.
Olhamos pela janelinha, avistamos a serra do mar e céu: azul, oras. Falando em horas, passou das 17 e o Bonito conta histórias para a equipe de enfermagem. Descemos correndo, o carro da Trupe já esperando, Bisnaga dirigindo porque Solara ainda está aprendendo. Nos esmagamos nos lugares, fechamos a porta, partimos como o bando que somos. Nas diferenças e semelhanças, combinamos de alguma forma.
Quem fala de combinar é a Alma Cogan na versão que ela canta de Cielito lindo, mas que dessa vez não se chama mais Cielito lindo porque não está em espanhol e sim em inglês e virou You, me and us. O refrão diz:
You, me and us
We are my favorite people
We all go together like peaches and cream
Or bells with a church and a steeple
Que em português fica mais ou menos:
Você, eu e nós
Somos minhas pessoas favoritas
Combinamos como pêssegos e creme
Ou sinos com uma igreja e um campanário
Pêssegos e creme fazem uma combinação gostosa, mas não posso dizer o mesmo de um sino, uma igreja e um campanário porque nunca os comi. Dentre experiências vividas, esta permanece inédita, e o ineditismo às vezes me assombra, às vezes me anima. Lembro do que foi minha jornada adentro da palhaçaria, uma sucessão de experiências inéditas e fichas caindo. Quando subi num carrinho de mão empurrado por uma psicóloga dentro do hospital e levantei a perna alto, bem alto, sorri e agradeci às palhaças e palhaços que vieram antes de mim e abriram o caminho: esta é uma oportunidade única, praticar profissionalmente a tolice, burlar regras.
Nos hospitais eu fui letras do alfabeto, fui sons, fui robôs. Sumi, apareci, sumi de novo. Casei, casei, casei, pelo menos uma vez com cada palhaça e palhaço. Lati, miei, rugi. Ri, muitissíssimo, e chorei, pouquinho. Sou dessas. Soprei bolhas, toquei coco no pandeiro e o refrão de Chiquita Bacana no violão (é tudo que sei). Tirei fotos. Muitas fotos. Não sei mais aonde foi parar minha imagem. Fiz brotar flores do meu corpo. E o inesperado me surpreendeu na sagacidade das crianças, na amorosidade de adolescentes, na bobice de adultos e na espontaneidade de idosos. Vivi intensamente relações de um minuto. Prometi comer um bolo em centenas de casas cheias de aconchego, tenho lares pra visitar até perder de vista.
Residi em histórias, afetos. Locais dentro e fora, pessoas distantes próximas. Desconhecidas conhecidas. Amizades improváveis, abraços, ois e tchaus em companhia das palhaças e palhaços que compõem e já compuseram a Trupe. A trajetória, ela é pessoal, não solitária. Sempre estive com.
Com minhas pessoas favoritas. Somos Trupe e além dela, por isso sei que, quando acaba, não termina. Nos vemos aqui e lá, seguimos. É tarde, já tiramos nossas maquiagens, nossos figurinos e um novo dia vem raiando, como canta a Carmen Costa, veja só, na versão brasileira de Cielito lindo que fala de saudadinhas tão lindas quanto. O refrão diz:
Ai, ai, ai, ai
Está chegando a hora
O dia já vem raiando, meu bem
Eu tenho que ir embora
Que em português fica mais ou menos:
Ai, ai, ai, ai
Está chegando a hora
O dia já vem raiando, meu bem
Eu tenho que ir embora
Do ceuzinho lindo sobrou o balanço agora acompanhado do pandeiro, que anuncia: Está chegando a hora, e quem vai embora sou eu, porque preciso. Diz-se que há uma hora pra tudo, e agora é hora de escrever que há uma hora pra tudo. Depois, a partida. Não parto de um lugar único ou linear. Vou embora de lugares, milhares, que morei, habitei, residi e prometi visitar. Torno-me passagem mas não solidão: levo as pessoas, minhas favoritas e até as desfavoritas, que me compuseram nesses encontros, e nelas me permaneço. Ao mesmo tempo cantamos, choramos e compartilhamos do vislumbre de um ceuzinho azul que é lindo e é nosso: me faz lembrar do que vivemos, me faz pensar aonde chegaremos.
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Um abraço e agradecimento a todas as pessoas que me formaram na Trupe da Saúde: Cami, Hique, Mancuso, Má, Lucri, Lari, Paulo, Bonito, Fer, Tropo, Yara, Volnei, Vicky, Eve, Edran, Frank, Vitor, Iza, Isa, Silver, André, Diego, Karina, Giulia, Simone, Ricardo, Mauro, César, Andréa, Jana, Pablo, Andrés, Federico, Rose, Julia, Will, Élisson, Cibele, Lis, Fernanda, Giordana, Bia, Aline, Anne, Glória, Adriana, quem veio antes e quem virá depois.
Bruno Lops