Esse mês ganhei um presente inusitado. Na verdade não sei se posso dizer que ganhei, visto que ela surgiu ali, disfarçada dentre as coisas que residem na minha casa. Sabe essas coisas que passam a viver na casa do nada? Ninguém convidou, apareceu ali, se mudou sem aviso prévio. Igual o gnomo guardião do mundo subterrâneo das meias, sabe? Bom, eu não sei se é esse realmente o nome desse mundo, mas eu decidi chamar assim. Lá só entram uma meia de cada par, nada de meias iguais! Existe assim, uma criatura oculta que, aproveitando um momento de distração, captura as meias e leva para o seu mundo. Eu também resolvi chamar essa criatura oculta de gnomo, pois são seres muito discretos, rápidos e pequenos. Passei muito tempo a procurá-los, mas engoli com o tempo a minha curiosidade, vai saber o porquê que eles precisam tanto das meias! Devem ser essenciais na vida dessas criaturas, não dá para julgar, nós humanos fazemos cada coisa! Confesso que minha vida ficou mais leve depois que eu simplesmente parei de combinar as meias, aliás, até me divirto com as misturas inusitadas que surgem nos “entre pés” do dia a dia. Bom, mas não estou aqui para falar desse gnomo. A questão é que nunca convidei um gnomo desses para vir morar na minha casa, aliás, nem para tomar um café ou comer um bolinho. Mas ele insiste em viver ali e chegou do nada. Assim como os descascados da parede. Um dia a parede é lisa e cheira tinta fresca…no outro um buraco surge revelando a tinta da pintura anterior, eu acho que a tinta de baixo precisa respirar às vezes. Mas enfim, estou falando disso, dessas coisas que surgem do nada e passam a conviver com a gente, tipo o trincado no azulejo do banheiro, a aranha pernuda no canto superior da sala, o ranger da cadeira da cozinha e os risquinhos nos cantos dos meus olhos. Na verdade essas coisas não surgem do nada, a gente que não vê, mas elas estão sempre ali e de repente são descobertas. Isso, eu não ganhei, eu DESCOBRI um presente inusitado! Uma nuvem!
Foi assim… dentre as coisas que habitam minha casa estava ela, disfarçada: Branca, disforme, mas com certa simetria, sólida, imóvel. Uma pedra! Não, um cristal! Ela já aparentava uma certa peculiaridade, então chamei de cristal. Assim ela ficou ali por meses até vir a grande descoberta. Um dia, tirando o pó da cômoda do meu quarto, encontrei algo diferente: uma pocinha d’água. Ignorei, podiam ser lágrimas de alguma criatura oculta, ou suor mesmo… No dia seguinte, novas gotas, ali embaixo do por mim nomeado cristal. Sequei. No dia seguinte mais gotas! Percebi também que o chamado cristal parecia um tanto menor do que no dia em que o encontrei pela primeira vez. Uma especialista em cristais, a quem recorri imediatamente, me contou que existiam cristais de sal que vinham de um certo deserto e que com a umidade do nosso clima, passavam a derreter. Lambi… Gotas de Sal! Sim, eram salgadas como o mar! Depois de um tempo, passada a decepção por perceber a finitude daquele ser, entendi. Não era uma pedra, nem um cristal, a especialista que me desculpe, mas eu sei o que é. É uma nuvem! É sim, tem formato de nuvem, cor de nuvem e dela sai gotinhas. É uma nuvem, uma nuvem de sal, uma nuvem de mar! Que lindo presente, é como se eu tivesse uma fábrica de mar que cabe na palma da minha mão! E ela veio morar aqui, comigo, justo comigo que tenho sentido tanta saudade do mar! Um amigo muito querido um dia me disse que saudade do mar é SALdade.
Pensei em tantas pessoas que sentem a mesma SALdade. Eu podia entregá-la para um grande fabricante e ele podia fabricar o mar. Assim matava a SALdade de muita gente, pensei. Também o mar ia chegar para aqueles que nunca tiveram a oportunidade de conhecê-lo. Que lindo seria! Mas aí lembrei que o mundo não funciona bem assim, o fabricante iria engarrafar o mar e vender por aí. Iria ganhar muito dinheiro e o mar seria ainda para poucos. Eu sei que seria assim, fizeram isso com a água! E a gente está tão acostumado com isso que nem percebe o tal absurdo! Engarrafaram água! A coisa mais essencial na vida da nossa espécie e a gente engarrafou e restringiu o acesso a ela. É como se eu decidisse engarrafar minhas meias e vender uma por uma para o gnomo, assim só sobreviveriam os gnomos mais abastados. Que crueldade! Pensei então que o governo poderia ter aquela nuvem, sendo ele responsável pelo bem estar de todo cidadão, poderia distribuir o mar igualitariamente. Os nossos impostos sustentariam a produção e todos teriam direito e acesso ao mar. Que lindo seria! Mas aí lembrei que os nossos governantes são tão egoístas quanto os grandes fabricantes. Não é a toa que são tão amigos! É bem possível que cada político desse país passasse a ter piscinas de água salgada em suas casas. Sim, cercariam o mar e a população só iria ver a cor dele se pagasse em 12 vezes sem juros cinco dias de estadia em algum resort por aí. É claro que para continuar tendo o mar em seus condomínios de luxo, o governo manteria uma certa distribuição dele. Mas diria que é de uma “marca” inferior, cobraria por essa distribuição, cancelaria a entrega se alguém não pudesse pagar naquele mês (mesmo a gente pagando tanto imposto), desviaria o dinheiro arrecadado, e ainda depois de um tempo, alegando má administração, venderia parte da fábrica de mar para um grande amigo fabricante, que poderia aumentar o preço do mar sem nenhuma justificativa e ainda dividiria os lucros com o governo. Pronto, transformaram o mar em lucro e o acesso igualitário foi pro ralo.
Foi aí que eu entendi. Não foi à toa que essa pequena nuvem se disfarçou em minha casa. Ela está escondida! Sim, ela sabe que o mar deveria ser para todos, ela sabe a preciosidade que é ter o mar na palma das mãos, por isso ela precisa escolher a mão que vai estar. Não que ela tenha escolhido a minha, acho que ela simplesmente não imaginou que eu descobriria a sua real natureza. Mas eu vou manter o seu segredo, aqui em casa ela não precisará mais se disfarçar. Vou pendurá-la a meia altura, em cima de um punhado de areia, perto da janela pra que ela possa sentir o vento e o calor do sol. Aqui ela vai estar segura para só chover até seu fim.
P. Bisnaga
19/07/2020