A vossa pessoa coordenadora do curso de Arqueologia
da Universidade Federal de Pernambuco,
seguem relatos imprecisos do agora.
(Que talvez quando vossa pessoa estiver lendo, sejam relatos imprecisos do antes.)
São do sul.
(Desculpa.)
Espero que encontrem o pendrive sob os escombros do que outrora será nossa civilização. Guardarei num cofre de porquinho que tenho desde minha pequenice e que, por ter durado tantas emoções, acredito que sobreviverá aos arrombos a que nossa comunidade terá sido acometida. Espero ainda haver entradas USB nos seus aparelhos eletrônicos, pode ser que já tenham ultrapassado essa tecnologia então obsoleta. Aqui, vossa pessoa há de encontrar relatos justificados com espaçamento 1.5 porque desde a faculdade não consigo me desfazer de certos padrões da ABNT. São padrões de escrita acadêmica, na época em que ainda escrevemos. Imagino que agora já estejam experimentando formas mais modernas de registro e compartilhamento de conhecimento. Sem mais delongas, meu indigníssimo pronunciamento:
Chegamos em julho de 2020. Cheguei, pois estou sozinho na janela do meu Zoom. As outras pessoas também chegaram, mas ainda não tenho certeza se posso dizer que chegamos em conjunto. Cada pessoa na sua janelinha. Não podemos nos encontrar, precisamos nos isolar. Minha gata está comigo então chegamos eu e ela, ao menos.
Acho que ainda há partilha.
Faço parte da Trupe da Saúde, ou das Visitas Virtuosas, ou do Disk Trupe, ou do Esperando na Janela ou como ainda chamaremos nossa versão online. Nossa e-versão. Conto ainda 12 palhaças e palhaços sobreviventes, com uma produtora, um psicólogo, nossas gatas e, um pouco mais sigilosas, as pessoas do escritório que produzem e comunicam o que por aqui se faz.
Eu visitava hospitais. Sou palhaço, quase esqueço de afirmar, achei que fosse óbvio a uma altura dessas. Ou fui palhaço e hoje sou e-palhaço. Eeeee, palhaço!
Eram 5 hospitais que com meus colegas eu visitava, todos de Curitiba, como você pode ouvir no primeiro episódio do nosso podcast, o Trupecaste (gravei na pasta “Áudios” no pendrive, junto com um trecho da abertura de Carrossel que me fazia emocionar quando criança). Nesse episódio eu dou o serviço do projeto, não sei exatamente a minutagem, mas sugiro ouvir inteiro. Se ainda conseguir acessar a antiga rede mundial, tente encontrar os outros episódios.
Sobre os hospitais, não entramos mais lá por conta do Covid-19 (lembra? No futuro ainda se fala da pandemia?). Podíamos ser vetores de transmissão, então interromper as visitas físicas era garantir a segurança de pacientes, equipe hospitalar e nossa.
Agora encontramos uma janela virtual e entramos nos hospitais pela rede mundial. Esperamos que de lá também entrem na Trupe pelo mesmo caminho. O trabalho mudou. Não vejo ninguém pessoalmente. Falo com as câmeras e com as telas. Será que as pessoas do outro lado sentem que falo com elas? Aliás, sabia que eu lavo a louça durante minhas videoaulas? Mas isso fica pra outra hora.
Sob ciclones e presidentes mercenários, sob interesses de empresas acima dos interesses comunitários, seguimos nosso trabalho (olá, patrocinadores, tudo bem?). Sigo, por aqui. Interajo de longe. Outro dia gravamos um vídeo, eu dei oi pro Abelardo que estava do meu lado e pra Solara que estava embaixo de mim, mas na verdade não via nem um nem outra (mas ouvia!). Onde estaria o Abelardo havia uma janela com vista para um terraço onde um vizinho saradão fazia seus treinos diários (olá, tudo bem?). E onde estaria a Solara eu via um piso com pelos de gato (ops, daqui a pouco eu limpo). No som, as vozes do Tropo, da Siriema e da Fúcsia (e seu alter-ego Jefferson) nos dirigiam via transmissões internéticas (se ainda existir internet, por favor, me diga que ela é pública e de acesso a todas as pessoas!).
Sabe que pela câmera parece que os fios dos nossos narizes ficam mais evidentes? As falhas de maquiagem? Demorou para eu me sentir encaixado no formato audiovisual, mas pode ser falta de costume.
Fiz uma live! Live é um negócio que todo mundo faz hoje em dia, vossa pessoa. O que acontece é que ficamos online fazendo palhacices e as pessoas que estiverem online interagem com a gente. E gravei podcasts! Nossa, como eu falo nossa! E minha voz sem meu corpo, é palhaça? É uma pergunta que eu levanto pra você na esperança de que, até o momento em que você lê, alguém já tenha respondido ou pelo menos encaminhado alguma reflexão sobre.
Na tentativa de construir junto o que será desse trabalho, também nos permitimos atravessar por pessoas convidadas de fora. Infelizmente, vossa pessoa, nossas diferenças de tempo não nos permitiram coexistir, mas teríamos lhe convidado para uma Live ou um Trupecaste (se diz TRUPECÁSTE e não TRUPEQUÉSTE). Falaríamos de quê? Arqueologia? Reflita.
Vossa pessoa, salvei umas fotos na pasta “FOtos” (sim, digitei errado o O em maiúscula no nome da pasta e não me importei em arrumar). Elas ilustram o trabalho presencial de antes e o virtual de agora. Há fotos de camarim e há registros dos bastidores das videochamadas. Por trás de todos os momentos. Ah, tem prints do Zoom também, pra você ver os quadradinhos de que falei no começo.
E há vídeos. Na pasta “Vídeos”, obviamente. Gravei uns falando com a câmera, veja se já fazem sentido (por enquanto não fizeram, mas estou sem criatividade). Tem alguns vídeos da minha gata, não resisti.
Na pasta “comidas” tem uma lista das comidas que aprendi a fazer em quarentena e outra das comidas que minha mãe manda pra mim achando que eu não tenho comida em casa. E na pasta “textos”, alguns textos do blog e outros que selecionei da internet. Na pasta “ZapZapson” tem cópias de conversas do whatsapp – e é a pasta mais cheia, nos mais variados horários. Tem umas ótimas falando besteiras, com figurinha e tudo. Tem desencontros e declarações de amor pro meu namorado (<3) e muitas, muitas fotos da minha gatinha (não resisti de novo). Nessa pasta de textos tem uma subpasta chamada TOP 10 MENSAGENS INDIGNADAS A PARENTES QUE FURAM A QUARENTENA, acredito que irá cumprir propósitos de entretenimento agora que tudo passou. Escondi uns memes da quarentena no pendrive, encontre-os e se divirta. O humor não resiste, ele persiste.
Aliás, não gravei, mas acredita que durante uma videochamada minha gata pulou nas minhas costas? Foi ridículo mas teria sido perfeito se tivesse acontecido na hora em que falei com o paciente do hospital. Ah, era disso que eu ia falar. Do paciente no hospital. Como é difícil estar presente sem estar presente. Imagino a sua dificuldade em me presentificar enquanto lê essa relíquia de inutilidade histórica. Espero que o paciente que a gente visitou também tenha escrito o relato dele desse momento, e se Nossa Senhora da Ciência quiser, ele falará de mim e da Fúcsia visitando-o nos breves 9 minutos que os 12% de bateria do tablet permitiram, e contará o que esse encontro rápido e inusitado causou em mim, na Fúcsia e nele. Cá entre nós: o começo foi ruim, mas melhorou. Pegamos jeito, e quando fiz novas e-visitas com a Siriema, já tínhamos mais ginga tecnológica (tecnoginga?) e recursos na manga. Até cenários a gente montou! No fim das contas, acho que não sou tão ruim assim…
Eeee, palhaço! Segura essa autoestima, ame-a ou deixe-a. Segundo nossa ex-secretária da leveza, frases da ditadura estão in. Contar mortos na pandemia está out.
Falando nos 12% de bateria, preciso terminar a mensagem. O horário do mercado está um pouco mais restrito (é ruim, mas é bom – reflita) e tenho que comprar ovos. Quando ler essa mensagem, espero que encontre também a máscara que eu mais usei nessa pandemia, a carta de vacinação da gata que eu adotei, a embalagem de leite borrada por eu ter limpado com álcool e o frasco com um restinho de Lysoform que tenho usado para desinfectar roupas. Desenrole o papel-filme em anexo e experimente esse delicioso cookie petrificado que eu fiz em quarentena – aprendi a cozinhar novos pratos melhor temperados e prego: você tem um minutinho para ouvir a palavra da cebolinha?
Espero ter contribuído com um retrato inútil das particularidades de um tempo tão confuso. Em caso de guerra nuclear (não estou mais duvidando de nada), lamento que não encontrará nada dessas coisas que separei. Espero que esteja bem.
Um abraço com carinho,
LOps
Lourdes
bialopse
BrunoLops
BrunoSaling
AVerdadeiraYaraRossatto (mentira)
lops
segundo quadradinho da esquerda pra direita no Zoom