Há épocas em que os corredores dos hospitais
tem mais portas fechadas
do que abertas.
Quanto mais colorida uma porta
menos convidativa é.
Plaquinhas. Avisos.
Possibilidades de contágio,
imunidades baixas.
Não entrar por precaução.
E o corredor fica mais comprido,
com portas misteriosas, crianças misteriosas.
Possibilidades de encontro para as próximas semanas,
quando da melhora.
Isso, nos corredores de dentro.
Quando a enfermeira sugere, incerta:
Ah, mas tem a janela…
Ah! A janela!
Em 7 anos no hospital nunca cogitamos a janela.
Damos uma volta, chegamos ao lado de fora.
E um novo corredor se abre,
já era aberto.
Uma fileira de janelas.
Protegidas com telas, voltadas para o pátio.
Acesso aos quartos, com vidros que nos garantem as distâncias seguras.
E dentro delas, os mundos misteriosos
se desmistificam.
“Era você que estava aí!”
E explicamos que por muito tempo
tentávamos adivinhar quem estava resguardado lá dentro.
Ou
“Não deixaram a gente entrar pela porta
porque têm medo que a gente vá roubar a cama”.
E, coincidentemente, só falamos da cama.
Fazemos as perguntas mais inocentes
tentando descobrir se é boa ou não.
“Imagina, nós, tentando roubar! Bem capaz!”
Ou
“Com vocês, o grande mágico!”
E o palhaço aparece e desaparece da janela
da forma mais truqueira possível.
A criança aponta as falhas e ri.
“Olha a mágica que EU sei fazer!”
E ela mostra rindo a perna recém-amputada.
“Sumiu!”
Muito melhor que a nossa, definitivamente.
Ou
“O cachorro da vizinha ta solto!”
E pedimos socorro pela janela antes que ele nos morda a bunda.
Ou
“Uma raposa saiu voando pela janela!”
E ouvimos a explicação óbvia:
“Ela tem uma mochila de foguete que a propulsionou.”
E nós, antes limitados,
fomos propulsionados pelas janelas
que já estavam lá.
Só não nos tínhamos dado o trabalho de as perceber.
Hoje, distantes,
na tentativa de evitar coronas e achatar curvas,
entram em nosso repertório cotidiano as janelas
de imunidade,
de transferência.
Redescobrimos as janelas.
Em confinamento, as reparamos,
escancaramos,
veneramos,
as janelas.
O sol no meio da tarde que bate no quarto
e só ali,
só naquela hora,
faz brotar pernas de todos os apartamentos,
nado sincronizado fora d’água,
buscando vitamina D.
(O quintal do apartamento)
A comida entregue por quem gosta de gente.
Chega, encosta o carro, abre só a janela.
“Oi, como está?
Bem e você?
Nessa loucura aí… fiz um feijão.
Obrig…Opa, sem encostar!”
Fecha a janela, acena, vai embora.
(“Mas não fique mais saindo de casa!”)
O dente que quebrou bem antes da quarentena
e só vai dar pra consertar depois.
“Mas que charmosa essa janelinha ficou”
e dá um beijinho no dentinho.
(Romance em tempos de crise)
O vizinho que toca sax
de noite, pela janela,
ressoando nos vãos entre os edifícios.
Bella Ciao.
(Tem horas que a gente precisa gritar)
As notícias que abrimos em janelas,
em abas que se multiplicam,
Revoltam, e nos fazem perguntar
se podemos sair disso mais comunidade.
(Esperança que vai e volta)
O visor do celular.
Nossas lives, vídeos.
Eu e você, nós,
tentando manter nossos laços
no mistério dos dias que virão.
(Parabéns: o sobrinho sopra na tela a vela que se apaga aqui em casa)
E os quadradinhos
na videoconferência
pelos quais vejo minhas amigas amigos colegas de trabalho.
Palhaças palhaços
longe dos hospitais,
cada qual numa janelinha
em conexão.
Que saudade.
(Amo vocês)
Bruno Lops / Lourdes