Se os palhaços de hospital alguma vez passarem pelo seu quarto de hospital oferecendo-lhe uma viagem impossível, improvável, não se assuste. Eles tem um veículo quase sustentável e muito compacto que pode transportar não só a eles mesmos, mas muitos outros convidados, para onde quiserem. Nem sempre os próprios palhaços podem acompanhar seus convidados nas viagens que proporcionam, muitas vezes, apenas lhes concedem o veículo em outorga vitalícia, de livre usufruto, já que, como dizem costumeiramente os pais e mães compreensivos, “eles precisam ir visitar outras crianças também”. Assim, sem tempo pra tantas viagens, às vezes é mais fácil participar de uma em espírito, ou em boas aspirações, do que propriamente dividindo os acentos.
Passado o primeiro possível motivo de estranheza, a oferta de uma viagem em pleno hospital, segue outro: “Mas este carro não poderá levar ninguém a lugar algum, é demasiadamente pequeno!”, dizem os mais céticos. Lembrem-se, se existe alguma qualidade, qual todos os carros de palhaços compartilham, é sua miraculosa capacidade de acomodar passageiros. Para se ter uma idéia, o carro, que os palhaços da Trupe de Saúde costumeiramente oferecem, cabe na palma de uma mão, seja esta palma adulta ou infantil. No manual, oral, que acompanha o carro, pode-se antever suas versatilidades no tópico que orienta como acomodar cinco elefantes adultos em seu interior: dois na frente e três atrás. Isso para ficar no básico da orientação de transporte paquidérmico previsto, pois não queremos chatear ninguém com excessivas descrições sucessivas de alocação de elefantes. Cinco bastam para incomodar muita gente. Mas o pequeno tamanho externo do carro, qual poderia sugerir apenas desvantagens, na verdade, se visto por outro ponto de vista, valoriza-o demais: quem não reconhece a versatilidade dos carros pequenos na hora de encontrar vagas nos grandes centro urbanos? Mas os mais precavidos, e de boa antevisão, poriam uma pulga atrás da orelha dizendo, “o problema, com um carro tão pequeno não será mais o de encontrar uma vaga, mas sim, encontrar o próprio carro estacionado, pois na correria do dia-a-dia muitas vezes se esquece onde foi deixado e, pelas dimensões miniaturizadas deste modelo, será quase impossível fazer a busca por contato visual!”, e adicionam “neste caso, teríamos que pagar o adicional de instalar um rastreador por satélite no veículo, tornando-o economicamente inviável!”. Mais uma vez enganam-se os incautos, que acabam tomando uma vantagem pelo seu oposto. Se observarmos bem, um carro de dimensões palmares poderá ser estacionado, vejam só, no próprio bolso ou bolsa de seus condutores, assim, não só se elimina a dúvida de sua localização, como inviabiliza a perda de chaves e controles de destravamento, estes, inutilizados pela falta de necessidade: não se tranca um carro que se carrega no bolso. E de brinde, uma surpresa para quem se preocupa demais com o aspecto econômico, os famosos mãos-fechadas, pois sendo pequeninos, estes carros dispõem de uma excepcional vantagem e viabilidade econômica: um carro que cabe no bolso de qualquer um!
Mas isso tudo não são mais do que vantagens acessórias, pois a preocupação maior dos viajantes não deve ser com seu meio de transporte e sim com a apreciação da viagem mesma, tanto para aqueles que consideram mais importante a viagem do que o destino, quanto para aqueles que pensam da forma inversa. Poderão inclusive dividir acentos no mesmo carro sem problemas, pois para ambos, se houver empatia e tolerância, tanto melhor e enriquecedor que sejam diferentes e possam inclusive falar sobre suas preferências divergentes. Afinal, é bom lembrar que a viagem costumeiramente compreende tanto o translado quanto a estadia.
Mas nós, palhaços, muitas vezes nos surpreendemos, pois mesmo com estas condições favoráveis encontradas no veículo de que dispomos, ainda sim, por vezes, nos repreendemos internamente diante dos potenciais viajantes concretos com quem nos encontramos nos hospitais: será que esperam de nós tão excêntrica proposição? “Que bobagem”, poderiam dizer, e com razão, pois se estão no hospital, não é por simples opção, mas provavelmente impedidos de sair dali por algum motivo que se impõe. Como poderiam viajar nestas condições? Às vezes, nos perguntamos isso também.
Certa vez, ao entrar em um pequeno quarto nos deparamos com uma mulher jovem, deitada na cama, bastante debilitada. Sua pele estava muito amarelada e, prostrada, se mostrava muito fragilizada. Ao seu lado, estavam três mulheres, provavelmente familiares ou amigas, fazendo-lhe companhia em silêncio. Todas aparentavam muito tristes e cansadas. Formavam uma imagem que involuntariamente associei a uma triste despedida. Transparecia muito amor e dor envolvendo aquelas pessoas. Entramos. Inevitavelmente nos tornamos o centro das atenções apesar de nosso cuidado e silêncio e independentemente de nossa aparência chamativa: qualquer um que abrisse a porta daquele quarto se tornaria “o acontecimento”. Havia um ar de espera. Espera do que quer que seja. Talvez de uma notícia médica que portasse esperança ou desalento. Apesar desta incerteza, era certo que não éramos nós os esperados. Estava evidente na surpresa em seus olhos, na suspensão que aquele encontro provocou. Sem jeito, demoramos algum tempo para decifrar qual era a conveniência de estarmos alí naquele momento. Em nosso trabalho sabemos que não bastam as boas intenções para garantir o sucesso de nossas visitas. Às vezes o sucesso é garantido pela nossa própria supressão, de saber-se e fazer-se dispensáveis. Em geral, quando surge esta dúvida, é sinal de que estamos diante de uma situação delicada. Mas, independentemente da dúvida que sentíamos, já estávamos alí, capturando toda a atenção silenciosa daquelas quatro mulheres.
Poderia ser uma oportunidade de oferecer uma viagem. Sem nenhuma dúvida, sabia ter um carrinho no bolso. O oferecemos diretamente à moça acamada. “Com licença, viemos aqui apenas para oferecer-lhe este pequeno veículo”. Nos segundos seguintes, compartilhamos apreensivamente, palhaços e acompanhantes, a expectativa pela a reação da jovem paciente. Segundos que pareceram uma eternidade em suspensão, rompidos pelo pequeno e custoso gesto de estender a mão para receber o presente. Esboçou um sorriso cansado. “Apesar de parecer um brinquedo, esse carrinho pode te levar onde quiser!”. Esta proposição foi exatamente a que impôs o contraste entre a materialidade da situação e a fragilidade do presente oferecido. Como que num reforço das vantagens do veículo, tivemos que adicionar. “Este carro pode te levar onde quiser, pois ele usa o combustível da imaginação!”. E assim que dissemos isso, como que já saindo do quarto, percebemos um choro contido. Nos despedimos saindo com o mesmo choro contido ecoando em nossos pensamentos, enquanto seguimos nossa passagem por aquele hospital, visitando outros quartos.
¹Para se tornar sustentável, um veículo tem que cumprir diversas exigências, desde o tipo de combustível que utiliza, passando pelos materiais empregados em sua estrutura, até as condições de trabalho que foram utilizadas na sua fabricação. Quanto ao veículo dos palhaços da Trupe da Saúde, temos um selo de super sustentabilidade
²Caso alguém tenha o interesse específico sobre as necessidades e os cuidados para o transporte de elefantes no veículo, há uma vasta sequência de tópicos, quais não vem ao caso aqui exaurir neste pequeno texto de apresentação, no entanto, sentimos a necessidade de incluir um dos mais importantes, para garantir os cuidados básicos no transporte de filhotes de elefantes. Como todos sabem, existe o risco de filhotes escaparem do veículo em movimento podendo causar acidentes e em grande risco de vida. A fuga dos grandes pequenos geralmente acontece pela fechadura do automóvel, alí mesmo por onde passa a chave. Assim, deve-se ter a precaução de preparar as caudas dos filhotes com ao menos um nó em torno de si mesma para, assim, impedir que passem pelo pequeno orifício.
³Este desvio de reflexão inserido ao texto me parece importante manter nestes tempos tão sombrios em que a tônica e o modismo são aqueles da intolerância e da discriminação, da incapacidade de suportar a existência do diferente. Conviver é o oposto da mútua tentativa de extinção. Parece óbvio a decisão entre qual deles preferir, mas se hoje duvida-se até das certezas mais elementares da ciência, como o fato de habitarmos um planeta esférico, me permito repetir o óbvio: assim com o “eu” e o “outro”, o “desconhecido” e o “conhecido” não são antíteses, são complementares. Ao destruir um, destruímos o outro.
⁴Eu, Palhaço Pelúcia e Palhaça Fúcsia.
⁵Acho importante frisar que os palhaços da Trupe da Saúde não restringem suas visitas à hospitais infantis. Nós visitamos hospitais e pacientes adultos, o que muda bastante o tom do ambiente. Neste caso, a jovem mulher deveria ter por volta dos trinta anos.
Palhaço Pelúcia / Bruno Mancuso
Dezembro 2019