Neste último mês troquei de figurino. Troquei de ambiente de trabalho. Fui fazer uma visita para conversar com um paciente. Não pude entrar no local, nem me aproximar do paciente, não havia placas de prevenção de contato, uso de máscara ou avental, apesar do cheiro horrível e de que com certeza tratava-se de um lugar com muitas bactérias. Tive de conversar com a pessoa por uma distância de mais de 3 metros, tendo de falar alto e sem poder olhar para quem conversava. Haviam grades, gente, roupas úmidas e penduradas que nos separavam. Havia um pastor fazendo oração. E apesar de parecer realidades diferentes, universos diferentes, o que preciso lembrar é que estamos no mesmo mundo, na mesma cidade, sociedade e que, concretamente, só há uma realidade. A realidade é que ser humano pode tratar e ser tratado como… sabe lá o que significa esta tal humanização. Fiz visita em outro lugar: na delegacia. Ao invés de uma enfermaria com 2, 4 ou 6 leitos, tratava-se de uma cela com apenas 01 cama e 23 pessoas dentro. Não pude nem entrar no corredor em frente a cela, pois o minúsculo corredor fora transformado em cela provisória. O paciente não era de hospital, era um paciente de Habeas Corpus. Preso há mais de 45 dias, depois há mais de 60 dias, há mais de 70 dias e quase há mais de 80 dias.
Usei terno e gravata. Trabalhei no fórum, tribunal e vez em quando no hospital.
Curioso é o contraste e semelhança de alguns lugares.
Na delegacia, as paredes têm marcas de tiros (disparados pelos próprios policiais), cinzas, descascadas, móveis velhos ou de material tipo pré-fabricados, grades enferrujadas, cheiro úmido, misto de suor, mofo e insalubridade, garrafas pet com urina dentro (em algumas “celas” não tem onde urinar).
No tribunal de justiça, prédio sempre novo e reformado, paredes sem um risco ou marca de prego, piso de granito ou mármore, colunas de granito ou mármore, elevadores que não têm botão de andares, pois antes de chamar o elevador tem um sistema como se pré-agendasse seu deslocamento por andares. As mesas são de madeira escura, polida. Muitos funcionários, todos com uniforme impecável e engravatados. Todos lhe tratando com a maior das formalidades, deixando bem claro serem “servos” profissionais. Cada andar tem seus garçons, com suas bandejas, onde servem água em copos de vidro, altos, ou café em xícaras de louça e bule de metal enfeitado.
E apesar de parecer realidades diferentes, universos diferentes, o que preciso lembrar é que estamos no mesmo mundo, na mesma cidade, sociedade e que, concretamente, só há uma realidade.
Tais pessoas e lugares estão diretamente ligadas, apesar de todo o esforço que se faz para o distanciamento.
E eu, que por vezes me senti a ponte entre um lugar, um “mundo” e outro, por vezes, também, me parece que não sou ponte. Não somos pontes. Somos todo e cada um também. Somos co-responsáveis.
A miséria, a luxúria, a compaixão, a injustiça e a justiça estão dentro de cada ser… humano.
Isto pode ter alguma verdade, mas é verdade também que não compreendo, ainda, isto muito bem. Pois e misturo. Na culpa, na pena, na prisão e libertação.
“Sem que eu perceba”, meu egoísmo se apropria do problema do outro e passo a projetar minha própria culpa, minha “necessidade de libertação, de salvação”.
Me prendo, me acuso, para poder me defender, para buscar minha libertação.
E, como alguém que comete crime faz sofrer muitos que estão ao seu redor (família, amigos), prejudica seu trabalho, também assim o faço.
Quem está preso está impedido de trabalhar. Quem comete crime avança o limite de seu direito e invade o outro. Assim, também o faço.
Mas, percebo. E tento refletir sobre, na esperança de não fazer de novo. Assim como quem comete crimes também o faz.
Este mês li, de novo, o livro “O Sorriso as pés da escada”, de Henry Miller, onde um dos ensinamentos é que, como, seres humanos, a felicidade pode estar em fazermos apenas as coisas simples que nos cabe fazer, com humildade e simplicidade, despertando sorrisos.
As vezes, queremos ultrapassar limites. Queremos como palhaços dar alegria aos outros. Mas a alegria é de cada um.
Assim como a liberdade. Cabe a cada um escolher, decidir ser livre.
Palhaço Ipsis Literis / Hique Veiga